(Publicado no Jornal O Estado de São Paulo em 31/05/2023)
Em todas as versões aceitáveis do que essencialmente caracteriza a atividade médica encontramos pelo menos um objetivo histórico principal razoavelmente consensual: cuidar da saúde das pessoas.
Temos observado um padrão de comportamento com assuntos científicos polêmicos na mídia — intensificado neste período de pandemia — que vêm se caracterizando tanto pela fulanização do problema, como pela desqualificação — que por conveniências não explicitadas — seleciona ou simplesmente deleta argumentos alheios.
Toda critica consistente precisa ser enaltecida, pelo menos este deveria ser o papel da oposição na política, e das teorias rivais nas ciências.
A tradição da polêmica, infelizmente empobrecida no País e no Mundo – substituído por uma polarização estéril — teria o mérito de resgatar um debate saudável. Onde todas as partes sairiam mais esclarecidas, ainda que com o risco de sairmos com as divergências acirradas. Essa é a essência da crítica. Aprofundar o conhecimento de matérias sensíveis para torná-las mais disponíveis para o grande público. Este seria um dos papéis da imprensa.
É preciso combater a desinformação que — muitas vezes sob o manto de um discurso alarmista e sectário — encontramos todos os dias nos veículos de comunicação. Portanto, é igualmente importante denunciar a estratégia de, a título de informar, desinformar.
Não é razoável que a desinformação sistemática seja eticamente aceitável. E, em alguns casos de forma recalcitrantes. É esta abordagem que precisa ser apontada como sensacionalista e dolosa. No caso da medicina, a propagação de informações enganosas afeta pessoas em tratamento, cria desorientação para as diretrizes da saúde pública e, as vezes, gera confusão, damos psíquicos e sofrimento mental desnecessários.
Num recente artigo publicado com destaque em um periódico carioca uma microbiologista sem qualquer experiência clínica, arvorou-se em espalhar notícias de duvidosa acurácia tecno-científica acerca de uma epistemologia complexa que se baseia no princípio dos semelhantes. A critica do conhecimento e a divulgação científica são essenciais, porém requerem preparo acadêmico e trato jornalístico responsável.
Além de lançar juízos infundados e generalizantes sobre a prática da medicina homeopática – insinuando que todos os médicos que atuam na especialidade encontram-se sob um escopo cientificamente inconsistente. A articulista tomou as nuvens por Juno quando entrou em uma seara, a qual notadamente, ignora. Como se sabe, a arrogância é uma das marcas do néscio, que julga dominar assuntos sobre os quais não faz ideia ou pior, tem noções essenciais distorcidas sobre uma disciplina. Antes de tudo, a coluna, além de desastrada é um erro crasso em matéria de pesquisa idônea e compromete a mídia científica séria.
O que é a experiência do ponto de vista científico?
Não são só dados laboratoriais reproduzíveis em ambientes controlados como pode pensar o senso comum. Segundo o epistemólogo Gaston Bachelard experimentar consiste em fazer as perguntas certas. Ele destaca que a história das ciências não pode ser meramente empírica, mas, antes de tudo, o progresso das ligações racionais do saber. Graças a esta forma de pensar pode-se resgatar procedimentos que foram precocemente descartados pela ciência e ressignificá-los. Demonstrando que a história pode estar muito distante de uma palavra final.
Foi, por exemplo, o típico caso da acupuntura. Do descarte precoce à sua redenção temos uma história interessante relatada pelo epistemólogo austríaco Paul Feyrabend. Conta este autor que quando Mao Tzé Tung chegou ao poder quis saber quais alternativas teria aquilo que classificou como ‘medicina ocidental burguesa’. Foi informado que nas montanhas, muito além de Beijing, resistiam praticantes de uma multimilenar forma de medicina tradicional chinesa que envolvia a associação de procedimentos como moxabustão, acupuntura e fitoterápicos.
O ditador chinês chamou estes supostamente anacrônicos representantes que foram provando seu valor quando instalados em ambiente de estimulo a pesquisa na Universidade de Pequim. Por motivações ideológicas anacrônicas o mandatário acabou produzindo um resgate importante. Décadas depois haviam reconstituído a tradição, às vezes até mesmo sob o risco de descaracterizá-la, e continuaram sendo financiados para aplicá-la e pesquisá-la em ambiente acadêmico.
O processo de validação científica das chamadas medicinas não hegemônicas progrediu. Foi encontrando cada vez mais adeptos no mundo, especialmente a partir do boom ocorrido na América do Norte nos anos setenta. Até que, muito recentemente, a acupuntura (apenas um dos braços da medicina tradicional chinesa) sedimentou-se institucionalmente, inclusive nos meios médicos mais tradicionais. Ambientes nos quais, durante muito tempo, eram declaradamente hostis a esta prática. Hoje, junto com as medicinas tradicionais, são, inclusive, sistemas medicinais recomendados pela Organização Mundial de Saúde.
Assim, há que se criticar a falsa noção, ainda fecunda dentro das ciências duras, de que haveria um ‘experimento crucial’ que determinaria a completa aceitação ou repúdio de uma disciplina. Mesmo porque, segundo Imre Lakatos, experiências cruciais só são vistas como cruciais muito tempo adiante.
Quando a análise enfoca a história da medicina, raros são os historiadores que lançam um olhar retrospectivo sobre esta ciência.
Não há porque se espantar que a ciência não seja neutra e nutra motivações políticas e econômicas em suas determinações, e, também, em sua leniência argumentativa. Ou seja, impõe-se reconhecer a não universalidade nos padrões normativos de ciência alguma.
Para Bachelard, identificar e compreender uma ciência é mapear seus impasses metodológicos e teórico-práticos que a originaram como procedimento racional. Esta condução da problemática foi conceitualmente bastante inovadora. Inscreveu-se como uma reação importante contra a confiança excessiva que a sociedade industrial depositou nas ciências experimentais e em suas metodologias, características do positivismo clássico, e que deu origem a uma estranha versão de fundamentalismo laico, desta feita, uma espécie de apostolado cientificista.
Confiança que ganhou estatuto axiomático: tratava-se de verdades unívocas e irrefutáveis. Alguns devotos das ciências experimentais pretendiam construir “superparadigmas”.
O positivismo, como todas as correntes de pensamento, teve seu momento e valor, entretanto seu determinismo e sua pretensão hegemônica, não se sustentam mais como parâmetros exclusivos para construção dos genuínos diálogos científicos.
Sob a persistência deste perfil uma abertura intelectual desejável no mainframe científico ainda não pode ser operacionalizada.
A epistemologia proposta por Bachelard, portanto, critica o anacronismo do positivismo lógico em sua aspiração de ser o método hegemônico na construção dos postulados científicos:
‘Ver para crer, este é o ideal desta estranha pedagogia. Pouco importa se o pensamento for, por consequência, do fenômeno mal visto para a experiência mal feita…em vez de ir ao programa racional de pesquisas para o isolamento e a definição experimental do fato científico, sempre artificial, delicado e escondido’
Alcances e limites da ciência
Esta versão filosófica dos fatos científicos tem enorme valor quando analisamos a vida prática da sociedade contemporânea. A epistemologia histórica sendo, por excelência, uma análise crítica da ciência que alcança também suas dimensões histórico-social e lógica, examinava menos o ‘como’ da atividade científica e muito mais seu ‘por quê?’ Bachelard usa o racionalismo aplicado na busca destas respostas, fazendo perguntas bastante incomodas, especialmente para aqueles que praticam o ceticismo seletivo. Por isto mesmo tornaram-se indagações vitais: o que direciona ideologicamente a ciência em suas trajetórias? Quais seus possíveis alcances e limites? Como se insere na relação e nas ligações com outros campos de conhecimento? Atenderá ela as necessidades ou mesmo o desejo dos sujeitos da sociedade?
Informações científicas tem sido divulgadas como se estivéssemos em um torneio terapêutico, cujo prêmio seriam as conclusões definitivas. Para desolação de muitos elas simplesmente inexistem no verdadeiro espírito da atividade científica. Os pesquisadores comprometidos com os critérios científicos deveriam ser os maiores protagonistas da insurgência. Os primeiros a se levantar contra convicções estáticas e à base da intuição. Pelo contrário, o valor maior está em detectar resultados inesperados e valorizar os achados inesperados e contra-intuitivos.
Esta reflexão desdobra-se em outras inquietações: se uma sociedade pode produzir e publicar em revistas peer review (revisadas por pares) milhões de papers ao ano, haverá leitores disponíveis para cada um deles?
E quanto ao valor do conhecimento prático? A sociedade bem o sabe, por isso procura médicos com experiência. Pois a lente da experiência clínica ainda é um instrumento insubstituível de autoformação. Assim como a densidade existencial proporcionada pelo trato com semelhantes traduzidos na clínica médica através da relação médico-paciente.
Bachelard sonhava com uma filosofia suficiente para que a ciência pudesse construir sua própria crítica. A proposta seria resistir à ideia de que o conhecimento sensível pudesse ser a fonte imanente de descobertas.
Deve-se desconfiar, pensava o filósofo, de uma clareza conceitual intrínseca que afirma que tudo domina. Que desconhece o ignorado e desconsidera o não explicável. Por isto, vale muito investir no instinto formativo que busque uma nova pedagogia da ciência – contra o velho espírito conservador – comprometida em obter provas claras por meio da indução, dos indícios e da abdução.
Pois é esta autocrítica que falta a uma aplicação universal da evocação de uma ciência acabada para as artes médicas. Sem dúvida que, quanto mais padronizado, testado, vale dizer, quanto mais evidente for um beneficio terapêutico, considerando a incontornável equação epidemiológica risco-proteção, tanto melhor e mais desejável será o procedimento eleito para um enfermo.
E a ciência médica procura buscar este padrão ‘ouro’ de excelência científica em suas pesquisas. O que nem ela, nem seus protagonistas podem evitar é subsumir que porque ela se pauta em achados epidemiológicos de relevância estatística ela pode abstrair de seus horizontes outras racionalidades médicas. Lógicas que não puderam ter a mesma constância ou regularidade estatística nos desenhos tradicionais de pesquisa clínica.
Independência e budget
Não pode haver equivalência moral em comparar as condições de desenvolvimento das racionalidades médicas integrativas sem considerar a disponibilidade efetiva proporcional de recursos para pesquisas e publicações.
É evidente que seria necessário que os Estados adotassem políticas públicas que conferissem alguma emancipação dos centros de pesquisa em relação à indústria farmacêutica. Eis uma área onde um Estado mais presente poderia ser benéfico para a população: no lugar de quebrar patentes (uma medida política, via de regra usada de forma populista) não seria muito melhor gerar patentes de substâncias medicamentosas abertas?
Como afirmava o historiador de medicina Henry Sigerist em meados do século XX, somente a independência e um budget para investigações científicas provido pelo Estado podem tornar as pesquisas com fármacos e investigação de procedimentos clínicos mais imparciais, seguros e, sobretudo, confiáveis. Isto é de notório interesse público.
Também é impossível desconsiderar que outros procedimentos terapêuticos agem em aspectos distintos do sujeito. Muitos deles. para além da moléstia propriamente dita. Ou a psicanálise, a massagem, a meditação, os exercícios, o padrão alimentar, os procedimentos que não envolvam fármacos, sem contar o próprio ócio, não desempenham papéis relevantes na vida humana?
Decerto que interferem em outros critérios de sucesso, e, portanto, produzem outras evidências. Se a ciência médica vem encontrando respostas importantes na pesquisa genética e na biologia molecular, mais importante ainda se torna voltar-se ao sujeito e compreender suas idiossincrasias e suscetibilidades, aspectos que o caracterizam tanto na enfermidade como na saúde. É assim que mais relevante ainda torna-se responder a inquietante dúvida de por que é que o mesmo agente causal não determina a mesma patologia em todos os expostos, ou por que reagimos diferentemente aos mesmos fármacos.
Portanto, não basta dar aulas de humanidades para os médicos, ainda que isto já fosse, por si só, um início bastante auspicioso. É necessário repensar os critérios de formação de forma mais aguda e só para usar uma palavra pudicamente evitada, radical. É necessário colocar maior peso no generalista e na atenção primária à saúde, pois é esta que pode tornar o Cuidado um bem mais acessível.
São estas correntes que juntas podem, efetivamente, prevenir enfermidades e promover a saúde. É preciso ensinar as novas gerações de médicos tudo de mais moderno disponível, mas dando o devido contrapeso à sofisticação tecnológica. O verdadeiramente lesivo à sociedade seria se só um tipo de pensamento médico prevalecesse. Há espaço para todas as medicinas e para toda boa atuação médica.
Encontrar novas formas de convívio entre as diferentes técnicas curativas. A hegemonia metodológica é, não apenas anacrônica, mas um insulto à ciência que se pretende investigativa e que adota o critério popperiano de refutabilidade.
Portanto, que tal menos diagnósticos peremptórios e mais abertura mental? Menos desinformação aos que procuram métodos éticos para aplacar seus sofrimentos, e mais reflexão e respeito? Que tal valorizar mais os clínicos que se esforçam para trazer cuidado, alívio, solidariedade, paliação, e quando possível cura para as pessoas doentes?
A propósito da discussão sobre ética e medicina, recomendo aos leitores que desejam informações precisas, que acessem o site do CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) para ler e refletir sem preconceitos sobre uma recente publicação. Trata-se de um texto que, decerto, não será unanimidade, mas contribuirá para esclarecer a sociedade sobre a Ética e as Razões da Medicina do ponto de vista da especialidade.
O livro “Ética em Homeopatia” é uma antecipação com esclarecimentos públicos que previne a desinformação tendenciosa sobre a especialidade e, principalmente, estimula a discussão sobre qual tipo de atendimento deve também estar disponível nos serviços públicos e privados do País. Retoma a discussão sobre a ética do sujeito, a importância de um programa de pesquisas, o aspecto preventivo das terapêuticas, o ethos do cuidado, o resgate da relação médico-paciente, sem uma oposição anacrônica à tecnociência.
Paulo Rosenbaum
Fonte: https://www.estadao.com.br/brasil/conto-de-noticia/critica-do-conhecimento-medicina-e-a-etica/
Com foco especial à realidade do País, Ética em Homeopatia traz temas que refletem, por exemplo, a inserção da homeopatia no sistema público de saúde, o ensino da ética médica, direitos e deveres do médico em geral e, em particular, do médico que exerce a prática homeopática. A obra está disponível na versão digital, podendo ser acessada pelo site do Conselho, em Ebooks e Publicações e no Aplicativo Cremesp.”
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Fonte: https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=NoticiasC&id=6269