Hahnemann estuda e cita cada um destes autores, sendo, portanto impossível duvidar de sua opção pela validação empírica. As autoridades por ele evocadas são em sua maioria de clínicos e pesquisadores de lastro eminentemente experimental. É uma fase na qual Hahnemann interessa-se particularmente pelo estudo da química, das enfermidades venéreas, e é claro, dos envenenamentos
Apesar de renunciar explicitamente `a idéia[6], nosso autor apresenta muitos traços análogos ao fundador do animismo médico, Stahl.[7] Ambos químicos excelentes. Estão entre os melhores de suas gerações, formados ainda sob a influência das escolas de Sylvius e Van Helmont[8] (a iatroquímica). Ambos estão entre os mais reputados investigadores médicos em seus respectivos períodos. Compartilham da mesma indignação frente ao intervencionismo irracional que testemunham. Testam suas hipóteses e redefinem sua atividade: da química para a investigação do fenômeno vital. Aquele era um momento de efervescência do século das luzes: assistia-se o surgimento da fisiologia empírica, Lavoisier fundava uma revolução química, Kant renova a filosofia continental, esboçava-se uma reação romântica ao mecanicismo cartesiano. Guardadas as devidas proporções, não é só em nosso tempo que o mundo muda rapidamente.
Hahnemann, assim como Stahl, constata que a prioridade estava na análise do fenômeno vital, importante demais para ocupar um lugar insignificante. A identidade do vitalismo sempre correra o risco de desaparecer. No entanto ressurgia sempre quando a clínica retomava a investigação empírica. O animismo e o vitalismo ascendem progressivamente em seus programas científicos. Apesar das concordâncias, os caminhos tomam destinos diferentes. Enquanto Stahl retoma a metafísica aristotélica em moldes muito pessoais, ou seja, modelada pelo pietismo com o qual estava envolvido, Hahnemann privilegia a lógica aristotélica como método para solidificar os constructos que estão por lhe dar a sustentação teórica e experimental necessárias ao andamento do projeto.[9]
Não obstante, Stahl mobilizou no século XVIII os mesmo temas que Hahnemann no XIX. Combate o mecanicismo do homem-máquina. Rebela-se contra a medicina sistemática, passa a duvidar das certezas peremptórias da terapêutica, imprime em seus tratamentos um tom empírico. Na maior parte de suas orientações terapêuticas adota a expectação como técnica.[10] Faz isto com muita consciência porque a considera um método menos pernicioso que os recursos disponíveis. Toda uma escola o imitará, afinal em “primeiro lugar não fazer mal” ratifica uma retomada do naturalismo hipocrático e conseqüentemente uma volta da confiança na natura medicatrix. ressuscitando-se a idéia do poder regenerador da natureza medicamentosa hipocrática, quando a physis providenciaria a recuperação do enfermo. O primeiro Hahnemann não fugiu a esta tendência.
Grosso modo, o método stahliano, também adepto do princípio da similitude, termina em dificuldades operacionais nada desprezíveis. Não há um tratamento sistemático da questão da anima nem de como e em quais circunstâncias convém aplicar o fármaco. Stahl duvida intimamente da terapêutica, mas não tem nada melhor para oferecer. Só lhe resta a opção da clínica expectante. Em sua terapêutica, pela primeira vez desde o malogro da psiquiatria de Paracelso, encontramos enunciada uma psicoterapia primitiva – os distúrbios fundamentais estão radicados na anima — que parecia valorizar o estado psico-mental do paciente, assim como a utilização dos sempre úteis recursos dietéticos. Aqui imita, com sucesso, o tentâmen experimental de Barthez, de qualquer modo terapeuticamente tão pouco operativo quanto o seu porque ambos não tinham instrumentos medicamentosos a não ser aqueles herdados de uma tradição que execraram e da qual tentavam distanciar-se.
Hahnemann, por sua vez, redige um novo caminho. Persegue a maturidade epistemológica que, lentamente vai incorporando ao seu guia instrumental – o Organon. Esta incorporação atinge decisivamente sua prática. Com agilidade ele passa das pesquisas iniciais, o embrião de seu programa científico, para a aplicação nos enfermos. De novo submete sua hipótese aos testes, adensando sua casuística com as tradicionais dificuldades já familiares a todos que conhecem sua biografia.
Mas o que ele obtém vai muito além do que inicialmente supunha. Ele observa resultados palpáveis entre o evento (introdução do fármaco) e os efeitos observados dentro de um gradiente temporal plausível. Esta intervenção, pensa ele, modifica a evolução natural da enfermidade. Este é o primeiro passo, calcula. Atento, quer mapear suas descobertas com cautela. É preciso compreender que originalmente ele estava priorizando — até aqui não havia manifestado sua crítica à inconjugabilidade das nosologias – a própria entidade patológica, a enfermidade, como objeto de estudo. Possivelmente estava preocupado com uma rápida comparação de resultados.
Assim seu pragmatismo é reforçado pela verificação de que, com ajustes, ele está mesmo de diante de um novo caminho. Não é, a rigor, um novo princípio mas é, aqui definitivamente, um novo caminho. Rota, que por muitos motivos será terrivelmente árida ao médico inovador: a escola empírica estava minada pelos grandes sistemas médicos (especialmente os de Hoffmann e Boerhaave), o estudo da totalidade estava sendo sacrificado pelo princípio da localização[11]
Os sintomas (e com isto a história clínica) já não tinham tanta importância porque haviam sido restritos à “escravos da lesão”[12]. A similitude estava em desuso e era praticamente ignorada pelas grandes escolas médicas. Ninguém dava valor, muito menos operacionalizava os medicamentos tênues da medicina hipocrática.[13] O movimento romântico (assim como a filosofia natural, a “nathurphilososophie” de Schelling) que influenciaram decisivamente nosso autor, não produziram exatamente um aval científico para os novos pesquisadores. Adicionemos a este painel as dificuldades para desafiar a hegemonia da fisiologia newtoniana e sua convincente mecânica aplicada à biologia.
Além disso, e principalmente, o vitalismo de Montpellier estava ilhado e desprestigiado pelo avanço das faculdades de medicina de Paris e da medicina insular. No meio médico a elisão do vitalismo foi um fato. Deste modo o ambiente — apesar de famosos analistas terem enxergado o oposto — era inóspito ao que estava por se desenrolar, às teses que estavam por ser enunciadas. Hahnemann, assim como Galileo age mesmo contra tudo e contra todos, ou como quer Hilton Japiassú referindo-se o célebre astrônomo “apesar de tudo e de todos”. Organiza enfim um contra-pensamento e efetua um corte epistemológico no conhecimento médico.
Novamente nosso inconoclasta ousa. Não está exatamente preocupado com “coerência científica”, ou “articulações políticas”, aliás pelo contrário, mostra-se extremamente inábil nesta esfera. Desgasta-se excessivamente na luta contra os rivais, é derrotado internamente em sua pretensão de conservar a homeopatia na rota idealizada, vê-se as voltas com as constantes ameaças de interdição do movimento. Tudo porque ele tinha prioridades bem definidas. Está obstinado pela idéia do tal de “novo caminho”, o que permite sofisticar progressivamente a teorética. As referências ao vitalismo, até a quarta edição do Organon, eram bastante incipientes. Desenvolve-se cruzando informações e requintando o conhecimento médico com as idéias surgidas da prática, ou seja: a totalidade-finalidade, interações mente/corpo-medicamentos-meio. Passa a emprestar conceitos e idéias da tradição vitalista,, voluntariamente ou não, passando a recorrer a estas para explicar os fenômenos que testemunha.