Nascido em 10 abril de 1755
“O homem, considerado como um animal, foi criado mais desamparado do que todos os outros animais. Ele não tem armas congênitas para sua defesa como o touro, nenhuma velocidade para torná-lo capaz de fugir de seus inimigos como o cervo, não tem asas, não tem pés com membrana interdigital, não tem nadadeiras – não tem armadura impenetrável contra a violência como a tartaruga terrestre e de água doce, nenhum lugar para se refugiar fornecido pela natureza porque ele é dominado por milhares de insetos e vermes para sua segurança..O homem está sujeito a um número muito maior de doenças do que os animais, que nascem com um conhecimento secreto dos métodos curativos para estes inimigos invisíveis da vida, instinto, que o homem não possui. O homem sozinho dolorosamente escapa do útero de sua mãe, liso, macio, nu, indefeso, desamparado e destituído de tudo que pode tornar sua existência suportável, destituído de tudo com que a natureza ricamente contempla o verme da terra , para tornar sua vida feliz.”
Samuel Hahnemann em “A Medicina da Experiência”
O pesquisador e o pensador.
Em primeiro lugar penso que seria justo explicitar aquilo que não será priorizado neste trabalho. Não nos ocuparemos com os célebres parágrafos do “Organon”, ou com os tópicos das “Enfermidades Crônicas”, nem tampouco faremos a convencional revisão de sua tumultuada biografia. Procuramos tomar os fatos criados por Hahnemann como idéias e a partir destas buscar — recorrendo aos paralelos bio-bibliográficos — as pistas que nos conduziram ao processo de criação de suas teorias. Nosso personagem desempenhou pelo menos dois papéis simultâneos e interdependentes na esfera do conhecimento: pesquisador da natureza dos fenômenos da saúde e pensador.
Por uma cuidadosa e intencional opção metodológica não consideraremos seus trabalhos como peças acabadas e definitivas. Nunca há desfecho para as reais construções científicas. Pelo contrário, enxergamos em seu corpus (freqüente e ingenuamente exaltado pela irretificável coerência) lacunas teóricas, hiatos metodológicos e contradições operacionais. Tentaremos mostrar que todas estas “incoerências” podem nos conduzir a interessantes desdobramentos lógicos das proposições originais. Corretamente avaliadas, contradições permitem redescobrimentos. Hiatos e lacunas vasculhados favorecem ao final o progresso de esclarecimentos, não o único, mas o último fim do conhecimento científico. Deste modo nós, os descendentes e legatários desta filosofia médica, poderemos penetrar em cada segmento histórico de suas argumentações.
Recorremos a autores como Koyre, Canguilhem e Khun para melhor situar a investida de Hahnemann contra a ciência normal de sua época, como a de um espírito que se mobiliza para empreender e mudar a medicina de seu tempo. Pesaremos as influências sócio-históricas dos séculos XVIII e XIX e buscaremos mostrar que muitas vezes as mudanças científicas não ocorrem somente através das reformas empíricas, mas principalmente, a partir dos movimentos filosóficos que redefinem horizontes científicos e tornam possíveis tais reformas. No nosso caso, veremos que tanto o movimento romântico como a filosofia natural, fazem parte das trincheiras teóricas que ampliaram e construíram o suporte das transformações.
Respaldados pela epistemologia histórica concluímos, citando o Prof, Roberto Machado, que nem sempre uma anterioridade cronológica é uma inferioridade lógica. É possível aplicar tal conceito em qualquer ciência, inclusive à obra hahnemanniana. Explico com um exemplo familiar ao nosso tema. Devemos cogitar a hipótese de que talvez a sexta edição do Organon não seja – apesar do próprio autor considera-la a mais próxima da perfeição — o ponto de maior evolução do método. Também é possível considerar que a homeopatia que fazemos hoje não seja necessariamente um progresso em relação à prática dos pioneiros. Podemos até mesmo supor que muitas das discussões que hoje travamos, sob a ilusão da originalidade, sejam apenas pálidos ecos do que já foi exaustiva e criativamente debatido e praticado.
Sob esta perspectiva não consideramos desprestígio algum, mas prova de vitalidade examinar questões surpreendentemente ativas há mais de dois séculos e meio. Esta persistência denota a tenacidade dos registros hahnemannianos. Estudos que privilegiam o viés crítico são os únicos que honram o roteiro da ciência, pois se Hahnemann se inscreveu no debate histórico foi precisamente pela sua capacidade de deixar-se afetar pelos surpreendentes fenômenos que foi desvendando. Somente assim compreenderemos o caudal histórico-filosófico que o embasou, com as múltiplas perspectivas que seus desafios foram lançando nestes dois séculos de permanência.
A dúvida inaugural pode então ser apresentada: uma vez que Hahnemann atualiza e incorpora a modernidade científica em sua perspectiva indutiva, incluindo a busca da validação experimental, qual seria então sua marca distintiva na investigação dos fenômenos médicos? Um pouco além disto, qual será o sentido de suas exaustivas pesquisas? Parece claro que ao subscrever a reforma terapêutica originada nas objeções dos clínicos insulares (Sydenham, Hunter) e franceses (Bichat, Fodera) frente ao uso da matéria médica e sua manipulação terapêutica, nosso autor coloca-se alinhado com a reforma empírica que estava se esboçando.
Somente depois subverteu a ordem instalada nas ciências médicas colocando em polvorosa a clínica tradicional ao propor uma modernidade muito própria e original, especialmente em relação ao uso de fármacos em sua aplicação prática.
Voltemos ao final do século XVIII. A espessa cortina do monopólio metodológico reinava na era dos grandes sistemas médicos. Hahnemann engaja-se ao que era considerado melhor da medicina de seu tempo. Ao final não vislumbrou qualquer regeneração para os graves e recorrentes equívocos constatados. Entendamos de uma vez sua situação: trata-se de um médico desesperado que não consegue atuar mais com o que havia sido treinado (ou seja, tratar doentes) sem graves prejuízos à sua consciência. Restringe-se então a adotar um higienismo, relativamente inovador. Passa a abominar as terapias que presencia. Prefere abdicar da prática clínica. Felizmente sua intuição foi refratária ao seu ceticismo. Argüiu sua desconfiança intelectual sob a avalanche de incertezas que o obsedavam. Ponderou melhor e admitiu que talvez houvesse algo a ser feito, noções que mereciam ser revisitadas. Inicialmente impõe uma indução, aparentemente inspirada nas prerrogativas de um autor que, estranhamente, jamais citou: Francis Bacon.