Artigo: Paulo Rosenbaum Introdução à Hermenêutica do Vitalismo: Samuel Hahnemann e Benoit Mure

A Medicina, destarte toda tecno-ciência aplicada às ciências da saúde, têm valorizado um aspecto que sempre foi caro às chamadas medicinas integrativas: a forma muito particular com que cada sujeito adoece, e igualmente a forma peculiar com que pode recuperar a saúde.

O ressurgimento mais recente de interesse pelos estudos das teorias vitalistas estaria necessariamente mais direcionado para a análise da peculiaridade dos fenômenos vitais e na construção de uma teoria médica mais abrangente que incorporasse, por exemplo, a possibilidade semiológica de descoberta de necessidades terapêuticas estudadas de acordo com cada singularidade humana. É precisamente nesta direção que o vitalismo poderia deixar de ser evocado como hipótese “ultrapassada”, que se limitaria a justificar aporias nas teorias biológicas dos séculos XVIII e XIX.

Como inúmeros comentadores da história médica constataram, no meio médico a elisão do vitalismo foi um fato (Canguilhem, 1994) isto foi particularmente importante depois da primeira metade do século XIX. Deste modo o ambiente – apesar de famosos analistas terem enxergado o oposto – era inóspito ao que estava por se desenrolar, às teses que estavam por serem enunciadas.

Da mesma forma e retificando mais uma vez Hahnemann não despreza o conhecimento da não fisiologia dos cadáveres, apenas relativiza uma clinica que baseia seus conhecimentos em experimentos feitos em animais. Explica a suscetibilidade como inespecífica e dá uma conotação mais geral e menos precisa para a origem das idiossincrasias. Num movimento inovador Hahnemann também retoma um diagnóstico exercido desde a Escola Médica de Salerno. O diagnóstico aegretudines, mas ao mesmo tempo utilizam-se das idiossincrasias para conferir-lhes estatuto positivo, as peculiaridades servem como elementos não só diagnosticadores de suscetibilidades mórbidas, mas como elementos semiológicos reveladores de caracteres muito peculiares a cada sujeito, não necessariamente patológicos.

Fica evidente que a fundamentação epistemológica de Samuel Hahnemann tentou dar ao programa de pesquisas da homeopatia dependerá sempre de um conceito de vitalismo que é devedor dos sistemas de Jean Paul Barthez e do animismo de Georg Ernst Stahl. Hahnemann entra com ingredientes muito particulares de que o que vale efetivamente no vitalismo são as especificidades do vivo “contra” os argumentos que analisam o comportamento da matéria inanimada. Para Hahnemann trata-se simplesmente de transposição impossível, pois então funda seu modelo experimental em experimentações ou mais especificamente em “experimentos patogenéticos” que permitem estruturar seu corpus. E é ele que dará origem ao “vitalismo mediado pela linguagem” que encontrará em Benoit Mure um importante interlocutor.

Neste contexto é que o vitalismo médico debruça-se sobre o empirismo para encontrar algo que estivesse “além” do conhecido pelas teorias físico-químicas para fundamentar a patologia ou o restitutio (recuperação e convalescença)  Esta é a passagem do vitalismo ciência para o saber terapeuticamente orientado da medicina. Várias escolas surgidas dentro das linhas vitalistas de investigação tornam-se formas distintas de uma mesma aspiração: conseguir demonstrar que o fenômeno vital é uma característica do ser vivo, por leis que se auto-regulam, expressando-se através de suas propriedades materiais que, fracionadas, não poderiam explicar satisfatoriamente, nem como o conjunto mantém sua integridade nem como esta é abalada a ponto de determinar a falência do ser.

Também é muito importante salientar novamente que a polaridade mecanicismo-vitalismo jamais foi um ponto de partida. Hahnemann recorre ao respaldo epistemológico na doutrina vitalista e progressivamente é que vai emergindo como resultado natural de suas pesquisas que hoje nomeamos como ensaios clínicos patogenéticos. E é este aspecto que só faz a integridade e aumentar seu peso epistemológico e termina atribuindo sua recém concebida teoria, estatuto de método. Trata-se da reativação de um vitalismo empírico, mediado pela indução e experiência metódica, e, que, aos poucos vai substituindo a versão primitiva de empirismo “selvagem”. Claro que, conforme vai percebendo quão operativas são estas assertivas, mais positividade imprime ao método. Sua pesquisa torna-se cada vez mais orientada. Encontra-se cada vez mais determinado na busca de sustentação para a enorme variedade de hipóteses que levanta.

Desde a medicina hipocrática, onde segundo Lain Entralgo nasceu a história clínica, (Entralgo, 1986) a medicina prestou atenção às narrativas e à questão do discurso como elemento constitutivo da orientação da semiologia e, portanto, da ação terapêutica. Isto foi feito na prescrição pedagógica no ensino da medicina pelo pai da medicina – quem funda a história clínica — porém jamais justificada cientificamente (ainda que tentativas tenham sido feitas para justificá-la do ponto de vista religioso ou filosófico).

Por isso, talvez, a questão da narrativa e da linguagem jamais tenha se tornado hardcore nas ciências da saúde, tendo sido desenvolvidas por outras áreas, como por exemplo, a psicanálise e muito recentemente pelas neurociências. A justificativa pelo retardo programático pode ainda ser, talvez, remetida ao conflito mecanicismo X vitalismo do século XVII. , que aliás ainda não se dissipou completamente entre os séculos XIX e XX.

A ligação que gostaríamos de estabelecer é que a conexão entre a identidade dos fenômenos vitais passa necessariamente, no caso da medicina, pelas palavras. Em as “Palavras e as coisas”, Foucault (1966) faz uma análise de como no século XVII, os pensadores abandonam o projeto de interpretação e passam ao projeto de taxionomização. Com efeito, toda taxonomia é interpretativa. O que há é uma transcrição da taxonomia à máthesis, matriz comum para atribuição de identidades com base em procedimentos de enumeração e ordenamento.

O predomínio quase absoluto na filosofia da medicina ainda é o de um enfoque exclusivamente corporal, isto é, essencialmente baseado na análise das modificações histo-químicas que se processam no organismo. Isto significa adotar um enfoque que necessita basear suas evidências nos fenômenos físico-químicos. Prioritariamente ou basicamente nele. Uma visão estritamente biocêntrica, compreendida como ciência positiva pós-galileana. Voltamos à definição de Comte sobre a biologia, e numa versão mais moderna o que nos aduz Ernst Mayr (2004). Esta hegemonia, e também seu preço, verificam-se na progressiva autonomia — e separação — das disciplinas em especialidades e sub especialidades, dentre todas as ciências.

O conhecimento científico, desde a reforma atribuída a Descartes, mas muito mais obra dos discípulos cartesianos, criou e estipulou critérios que normatizaram e ordenaram as ciências na discursividade de uma metodologia rigorosa — e que, por sua natureza de inspiração positivista, retirou de cena as especificidades do ser humano.

Por outro lado o vitalismo, entendido já como filosofia da ciência, privilegiava a especificidade do vivo: trata-se daquele recorte que, sem desprezar os fenômenos físico-químicos que embasam as explicações de evidências científicas, não os adota como único guia. Se o ser humano é um ser de linguagem, uma medicina do especificamente humano não pode se restringir a ser, por definição, uma medicina dos processos que regulam os corpos. A busca foi tentar achar modelos que sustentassem epistemologicamente a busca de uma identidade para o fenômeno vital.

É neste contexto que Hahnemann forma sua própria versão de vitalismo que, de um lado, ataca a insuficiência da classificação das doenças (a nosologia) como critério norteador único das ações médicas: os corpos produzem sintomas que são expressões da linguagem natural das disfunções e perturbações de toda ordem que atingem os sujeitos. E que, muitas vezes, não apresentam um substrato de patologia detectável. Segundo esta lógica nenhuma taxionomia ou “Código Internacional de Doenças” seria suficiente para operar sobre a infinita diversidade humana de sintomas. E a ciência médica vêm buscando construir sintaxes destes agrupamentos de sofrimentos difusos, pois inespecíficos, para dar as devidas respostas terapêuticas.

Daí que a montagem de seu vitalismo envolve, necessariamente, uma mudança na semiologia e nos hábitos médicos para encarar e lidar com sintomas. Com este redirecionamento a história clínica passa a ser uma inspeção muito mais abrangente de toda sintomatologia. Não podemos omitir um conceito caro à semiologia hahnemanniana: o conceito de compensação e de supressão. Os órgãos que funcionam em “admirável atividade harmônica” ao serem perturbados em sua “dinâmica vital” pela enfermidade produzem sintomas resultantes de déficits ou super estimulações de suas funções. Estas primeiras perturbações, mesmo quando não um diagnóstico plausível, determinado, pois muito difuso e inespecífico, tendem a produzir sintomas e sinais que já podem, uma vez bem identificados, ser guias que conduzem a uma prescrição medicamentosa. Mesmo assim, há que se cuidar para não produzir mera “supressão” dos sintomas, pois esta, diferentemente de uma ação saneadora/curativa aprofundaria a patologia, que seguiria intacta e produzindo sintomas e sinais cada vez mais graves, podendo, neste caso, levar o doente funcional para a categoria de lesional.

Pois bem, esta noção de perturbação na vitalidade – pela qual Benoit Mure também se orientava – precisava ser sempre checada durante um tratamento, o que caracterizava um aspecto preventivista da atuação de uma abordagem vitalista. Não foi outro o motivo – falar sobre a supressão, vicariância e ancoragem dos sintomas de órgãos mais vitais para os menos vitais – que Hahnemann escreveu sua obra mais polêmica, até hoje tanto contestada como incompreendida: “Doutrina e Tratamento Homeopático dos Moléstias Crônicas” (Hahnemann, 1843)

Importante lembrar que em função das correlações entre lesão e sintoma, estabelecidas por Giambatista Morgagni, os sintomas passaram a ter progressiva importância no estabelecimento do diagnóstico do que na preocupação em compreender o conjunto integrado de disfunções. Os sintomas, ou o conjunto de sintomas, ficaram como que encarcerados no complexo taxionômico que lhes dá o nome assim como restritos à “escravos da lesão” conforme Morgagni apontou em seu “De Sedibus” (Lafeta Novaes, 1996)

A criação de uma medicina centrada no paciente e da medicina baseada em narrativas advém também de reações produzidas pela insatisfação dos usuários da medicina. Compreende-se bem por que: as pessoas desejam ter suas discursividades registradas. A deposição da palavra no outro (Badiou, 1999) foi perdendo lugar entre os procedimentos das tecno-ciencias. Ninguém as ouve, não há tempo para anotar-lhes o discurso. Um projeto de uma medicina “para falantes” se estruturaria como “medicina dos processos verbais”: onde medicamentos estimulam discursos (falados e corporais). Aparentemente este aspecto era particularmente perturbador para Hahnemann conforme progredia e adensava as pesquisas dos medicamentos e sua aplicação prática.

Um outro sujeito, introdutor da homeopatia no Brasil, retoma o projeto do vitalismo, trata-se de Benoit Mure.

Fonte: https://www.estadao.com.br/brasil/conto-de-noticia/introducao-a-hermeneutica-do-vitalismo-samuel-hahnemann-e-benoit-mure-parte-i/ 


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