Paulo Rosenbaum
Nas quartas-feiras abordarei alguns aspectos da ciência ligadas ao campo médico a fim de tentar elucidar um debate e contornar o risco do eterno retorno do mesmo. A necessidade deste tipo de crítica e interlocução tornam-se prementes a despeito das campanhas sistemáticas de desinformação que tem frequentado as mídias. Ora, não se combate o embuste e a fraude com fanatismo, e eles existem de todos os lados. O fanático precisa de respostas peremptórias e certezas insofismáveis, a ciência lida necessariamente com perguntas e incertezas. Ela, a desinformação, sempre existirá e o leitor criterioso saberá antecipar as motivações: frequentemente interesses completamente alheios à ciência e ao debate científico profícuo. A ausência de critérios éticos, neste tipo de debate, ainda que particularmente perturbador uma vez que envolve a saúde pública e afeta diretamente pessoas sob tratamento, é pautada, sobretudo, por uma decisão apriorística — portanto não baseada em evidências. Ela está baseada em pressupostos não científicos — de cassar a discussão para promover um revival de anacrônicos dogmas e promoção das “certezas absolutas” inspiradas em um ultrapassado neopositivismo.
Seria de se supor que aqueles que se dedicam a produzir conhecimento científico devem ser lúcidos o suficiente para entender que a primeira certeza do pesquisador sincero: assegurar-se de que em matéria de pesquisa científica nenhuma conclusão é definitiva ou irreversível. Vale observar que, em todo arsenal terapêutico disponível, existem apenas 10 medicamentos com a certificação 1A, isto é, indubitavelmente eficientes. Isso significa que os médicos devem se limitar a prescrever somente aqueles que constam desta listagem? De forma alguma. Com ética, responsabilidade e segurança científica sempre estamos no campo de teste de hipóteses. Por isso epistemólogos como Karl Rotschuld classificou a medicina como ciência operativa, isso é, sempre há dimensão que poderíamos classificar de artesanal quando o clínico faz a interpretação dos sintomas e estabelece a terapêutica que melhor se adequa a cada paciente. A pesquisa científica precisa, portanto, necessariamente estar aberta ao contra intuitivo e aceitar as respostas que contradizem dogmas e o uso ideológico-instrumental da ciência.Apesar das lacunas metodológicas, já há alguma evidência de que, por exemplo, acupuntura e homeopatia produzem resultados terapêuticos que supera o placebo, incluindo resultados na veterinária, odontologia e até mesmo na agricultura.
Pois é isso que, por exemplo, a Organização Mundial de Saúde reconheceu recentemente com mais ênfase, o papel importante exercido através das medicinas integrativas, incluindo homeopatia, acupuntura, prática de yoga, meditação, massagem e psicoterapia em suas várias modalidades para a saúde das pessoas. Pareceria portanto inconcebível que no primeiro quarto do século XXI surgissem sujeitos e grupos, sob o manto ardiloso de uma cruzada anti obscurantista, outorgaram-se o papel de árbitros onipotentes para definir o que é ou não “ciência”. E passassem a atacar metódica, estratégica e seletivamente toda prática médica que não lhes pareça, estrita e canonicamente, baseada em uma epidemiologia restrita aos resultados clínicos obtidos através de tubos de ensaio e resultados quantitativos em grupos de pessoas. Curiosamente as pesquisas apontam para o lado oposto: os estudos qualitativos e que levam em consideração respostas individuais tem sido cada vez mais valorizados.
Faltam-lhes, portanto, critérios e sobretudo experiência clinica da prática médica para distinguir que a lógica clínica tem, além da dimensão biocentrica, aspectos que envolvem outras dimensões tais como constante monitoramento do estado anímico, valorização dos sintomas subjetivos e aspectos preventivos em relação a saúde mental. E, por último, mas não o menos importante, a ponderação dos efeitos colaterais dos tratamentos e seus custos correspondentes — pecuniários e não pecuniários — oferecidos à população.
Uma das questões centrais da medicina tem sido subestimada e parece propositalmente ausente de boa parte das discussões epistemológicas contemporâneas. O avanço da tecno-ciência na produção de insumos farmacêuticos associada à crescente — e bem-vinda — sofisticação dos diagnósticos, produziu um efeito colateral danoso: deslocou da medicina quase todas as questões ligadas ao sofrimento mental e à individualização dos sintomas. Pergunta-se: Como as práticas médicas podem reincorporar e lidar com a subjetividade de cada pessoa doente?
Outra preocupação é não apenas contornar a medicalização da vida, mas buscar evitar que os pacientes recorram ao uso sistemático e abuso das drogas psiquiátricas, particularmente quando estas não tiverem indicação absoluta. Portanto, uma possível solução para a promoção da saúde mental, prevenção e tratamento dos distúrbios psíquicos menos graves pode não estar apenas e prioritariamente treinar clínicos gerais para administrar psicofármacos. O encaminhamento para o eufemismo chamado de “re-humanização da medicina” pode estar em dar um outro enfoque como resgatar uma perspectiva antropológica para a medicina e este se dará exatamente no campo da relação médico-paciente, a “amizade médica” como bem definiu Lain Entralgo.
Esta “ontologia do encontro”, baseado em um semiologia mais abrangente e generosa, e que se processa também na relação médico-paciente, pode trazer não apenas benefícios terapêuticos colaterais, mas efetiva capacidade de aprimorar a empatia e a compreensão do sofrimento. Não é uma tarefa fácil, o médico se desloca para ir ao encontro de uma outra pessoa com toda sua carga de subjetividade, e, portanto, precisa acolher e envolver-se, porém sem se deixar contaminar psiquicamente, isto é, manter-se dentro da objetividade terapêutica.
O tipo de consulta, que não é monopólio da homeopatia nem de outras técnicas, mas sempre fez parte de uma técnica inclusiva e acolhedora, mais detalhada e compreensiva, onde se investiga desde os hábitos alimentares às características do sono, dos hobbies às hipersensibilidades meteorológicas, das idiossincrasias pessoais ao ambiente familiar, cria, quase espontaneamente, um estreitamento na relação médico-paciente e isso produz benefícios adicionais.
Deste modo, diante de entrevistas mais intensas e prolongadas, decorrentes de exigências do próprio método, é mais do que natural e decorrente desta proximidade, que a adesão aumente assim como o interesse daqueles que se tratam em seguir a orientação terapêutica proposta pelo médico. Por isto o historiador Pedro Lain Entralgo fez questão de trazer uma especificidade: não se trata de uma amizade como aquela entendida pelo senso comum, mas de uma “amizade médica”. Também não se trata de uma forma de psicoterapia stricto sensu – e deve-se mesmo ter precauções com formas involuntárias de psicanálise selvagem – mas de um processo transferencial que implica em compromisso mútuo e responsabilidade compartilhada.
Ela, a transferência, é levada em conta, ainda que parte dos médicos ainda não tenha sido adequadamente treinados para usá-la da forma adequada. Não se confunda proximidade e real identificação (ou cumplicidade neurótica) com o paciente (que pode acontecer em um ou outro caso) com a “amizade médica”, um conceito específico que envolve laços de confiança e solidariedade. Mas há sempre que se estabelecer barreiras naturais para que as fronteiras não sejam confundidas.
As escolas de Medicina, mesmo as melhores, geralmente concentram-se a ensinar os médicos na disciplina de Propedêutica e Semiologia, em como fazer uma anamnese, buscar os sintomas objetivos, cataloga-los, tudo para que se possa ser capaz de formar um quadro diagnóstico plausível da patologia a ser tratada, e estabelecer a terapêutica e um prognóstico mais adequado e eficaz.
Se a medicina deseja recuperar para si a tradição humanista que foi indevida e involuntariamente cedendo lugar à hipertrofia da biotecnologia e da propedêutica armada aplicadas às ciências da saúde, o resgate começa com a recuperação da linguagem e o significado do sofrimento para cada um. Uma vez que cada pessoa tem um modo muito particular de adoecer e também uma forma muito particular de estar sã. E como explicou a psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco, sempre que surgem novas doenças a medicina também sempre encontra novos tratamentos. Mas, ao mesmo tempo, quando some uma patologia ela cede lugar a outra: “quando a sífilis foi controlada apareceu a AIDS, quando a psicoterapia encontrou uma forma de tratar a histeria, testemunhamos uma epidemia de depressão”, escreveu Roudinesco.
Isso também significa que um médico deve se ocupar do tratamento tendo em vista a especificidade da queixa clínica e da moléstia diagnosticada. Ora, essa observação poderia ser uma saída, se, e somente se não houvesse uma crise nos sistemas de saúde. Se a OMS estiver certa naquilo que previu o relatório de uma reunião feita em Geneva, no ano de 1988, de que neste nosso século XXI teremos prevalência dos distúrbios psíquicos. Afinal estaríamos entrando naquilo que o texto nomeou como o “século da depressão”.
Em seu último relatório de 17 de junho de 2022 a O.M.S., fez a maior revisão sobre saúde mental desde a virada do século:
“Em 2019, quase um bilhão de pessoas – incluindo 14% dos adolescentes do mundo – viviam com um transtorno mental. O suicídio foi responsável por mais de uma em cada 100 mortes e 58% dos suicídios ocorreram antes dos 50 anos de idade. Os transtornos mentais são a principal causa de incapacidade, causando um em cada seis anos vividos com incapacidade. Pessoas com condições graves de saúde mental morrem em média 10 a 20 anos mais cedo do que a população em geral, principalmente devido a doenças físicas evitáveis.”
O relatório também exorta à comunidade ligada aos serviços de saúde a adotar novas formas de abordagem para os cuidados referentes à saúde mental:
“Estabelecer redes comunitárias de serviços interconectados que se afastem dos cuidados de custódia em hospitais psiquiátricos e cubram um amplo espectro de atenção e apoio por meio de uma combinação de serviços de saúde mental integrados à atenção geral de saúde; serviços comunitários de saúde mental; e serviços para além do setor da saúde.”
Há, portanto, um dilema na medicina preventiva que alerta, por um lado, para o custo excessivo para manter os recursos médico-hospitalares direcionados para doenças já estabelecidas, e, de outro, insatisfação com os modelos de serviços de saúde oferecidos mundo afora.
Como se pode avaliar acima, este aspecto piorou muito durante a recente pandemia em função de múltiplos fatores: isolamento social, importante crise socioeconômica, aumento da vulnerabilidade dos assim chamados grupos de risco e a enorme pressão exercida sobre crianças e adolescentes durante as medidas de isolamento social. Segundo o mesmo relato “A depressão e a ansiedade aumentaram mais de 25% apenas no primeiro ano de pandemia.”
Pode-se provisoriamente afirmar que as medicinas integrativas e complementares não são apenas necessárias, elas são inevitáveis.
Na próxima quarta-feira: A ética da pluralidade metodológica
Referências:
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______________Artigo Publicado no Blog “Conto de Notícia” no Jornal” O Estado de São Paulo”: “Hahnemann será atual 266 anos depois? 10/04/2021. Acessem e leiam através do link https://www.estadao.com.br/brasil/conto-de-noticia/hahnemann-sera-atual-266-anos-depois/
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*Parte deste artigo integrou uma coletânea em uma publicação da Câmara Técnica de Homeopatia do CRM-SP intitulada “Ética em Homeopatia” Dantas, F.(Org.) et als. Recentemente Publicada pelo CREMESP. Acessem e leiam o livro através deste link:
https://www.cremesp.org.br/library/modulos/flipbook/etica_em_homeopatia/
Fonte: https://www.estadao.com.br/brasil/conto-de-noticia/aspectos-da-diversidade-metodologica-nas-ciencias-medicas-i/